Hospital de São José
Dom José, o primeiro de Portugal, mandou anunciar que tinha decidido
«fazer
perpettua irrevogavel Doação da Igreja e Collegio (de Santo Antão) com
todos os edifícios interiores, officinas e cercas e tudo o mais que se
acha dos muros da dita caza para dentro sem limitação
alguma ao hospital» que viria a adoptar o nome de São José.
Apesar
da importância histórica da doação, há muito que se previa tal decisão
porque além de funcionar, parcial e deficientemente, o Hospital Real de
Todos os Santos ficara mortalmente danificado com o terramoto de 1755.
Herdeiro
dos privilégios e tradições do Todos os Santos, o Hospital de São
José seria instalado o mais próximo possível do seu predecessor, tendo
sido por isso escolhidas as instalações do Colégio de
Santo-Antão-o-Novo, que pertencera aos Jesuítas e que se encontrava
desocupado há pelo menos seis anos, desde que o Marquês de Pombal os
banira de Portugal.
Considerado como um dos maiores conjuntos
edificados em Lisboa, o Hospital de São José herdou dos Jesuítas um
conjunto de construções em grande parte arruinado pelo Terramoto.
Construído
em 1589, segundo traço do arquitecto Baltasar Álvares, o Colégio dos
Jesuítas foi afectado em alguns pontos pela catástrofe de 1755, sendo de
referir a lamentável perda da igreja, que se diz ter sido uma das mais
belas do seu tempo. Desconhecida para a maioria das pessoas e muito
interessante do ponto de vista histórico é a narrativa da construção do
Colégio de Santo-Antão-o-Novo.
História repleta de peripécias com
episódios hilariantes, as origens do edifício onde actualmente funciona o
Hospital de São José começa quando os Jesuítas, que possuíam já um
Colégio igualmente consagrado a Santo Antão no local onde hoje vemos a
Igreja do Coleginho, nas traseiras da Mouraria, resolveram que era tempo
de construir novo instituto porque naquele local já era difícil
expandirem-se.
O Cardeal Infante Dom Henrique foi o principal
impulsionador da ideia, tendo mandado comprar umas casas que havia junto
ao Arco da Graça, juntando-lhe outras construções e terrenos doados por
Dona Filipa de Sá, 3ª Condessa de Linhares.
O próprio rei Dom
Sebastião contribuiu para o novo colégio, ordenando à Câmara de Lisboa
que cedesse à Companhia de Jesus uma parte do Campo de Sant'anna para
ali se formar a cerca do novo estabelecimento.
No entanto, segundo
documentos da época, os terrenos cobiçados pelo Jesuítas e que Dom
Sebastião tão pronta e levianamente oferecia aos padres da Companhia de
Jesus, estavam na altura ocupados por uma série de casas e pardieiros
humildes que constituiam o chamado Bairro de Sant'anna.
É aqui que começam as dores de cabeça dos Jesuítas.
Aparentemente,
dois factores explosivos contribuiram na altura para o reboliço que se
seguiu: o bairrismo proverbial dos bairros lisboetas de então, por um
lado, e a presença de um padre tempestuoso e decidido, que instigava as
populações locais a boicotarem o empreendimento, por outro.
Assim que
começaram os trabalhos de demarcação dos terrenos, a população
enfurecida começou a atirar pedras contra os trabalhadores enquanto o
terrível padre, confessor das freiras de Sant'anna, arremessava conjuras
e maldições que fariam tremer o menos supersticioso dos operários.
Deste modo, estiveram as obras paradas por muito tempo, sem que alguém
estivesse disposto a arriscar-se a subir ao sítio de Sant'anna, até que
eclode a tragédia de Alcácer-Quibir e o Cardeal Dom Henrique assume a
regência do país.
Como protector da Companhia de Jesus, o cardeal não levou muito tempo a pressionar o andamento das obras.
Apesar disso, o lançamento da primeira pedra, efectuado no dia 11 de Maio de 1579, foi realizado de modo discreto, quase a medo.
Segundo
Baltazar Telles, cronista dos Jesuítas, parecia mais prudente aos
homens de Loyola evitar nessa altura quaisquer confrontações
« porque de começada a obra, facilmente se impede, mas depois de principiada, posto que se cançem, já a não podem derrubar».
Porém,
ao contrário do que se esperava, os populares de Sant'anna não perdiam
«pitada» do que se passava e assim que se aperceberam das intenções dos
Jesuítas sairam a correr à pedrada aos pobres trabalhadores.
A colina
onde se situa actualmente o Hospital transformou-se rapidamente num
campo de batalha e a construção do colégio voltou a cair num absurdo (e
ridicularizante) impasse.
Tanto mais embaraçosa era a situação
quanto, dias após dia, o apoio popular em torno da causa de Sant'anna
crescia, com a aglomeração (no actual Campo Mártires da Pátria) de
milhares de habitantes de outros bairros dos arredores.
Nessa altura, já já não era apenas as casas a derrubar, mas todo o projecto em si que estava em questão.
Diziam
os manifestantes que não era digno de um país enlutado pela morte do
Rei «Desejado» que se fizessem monumentos luxuosos e magnificientes como
aquele e que, com os cofres esvaziados pela louca aventura de D.
Sebastião, fosse gasta uma fortuna num colégio quando os Jesuítas já
tinham outro.
Os homens de Loyola, no entanto, conseguiam maneira de
fugir ao cerco ao descobrirem a existência de areia e alvenaria no
interior da obra que lhes permitia continuar os trabalhos sem ter de
passar pela população em pé de guerra.
Para ajudar a causa dos
Jesuítas, nessa mesma altura foi nomeado como «presidente» da Câmara de
Lisboa um homem muito respeitador, influente, principalmente entre as
classes mais desfavorecidas: Dom Pedro de Almeida. Diz-se que o novo
«autarca» foi falar à população procurando dissuadi-la da
inevitabilidade da construção e (qual político moderno em campanha
eleitoral) pegou numa enxada e foi ajudar os operários sitiados.
A
obra, no entanto, seria interrompida de novo em 1580 por morte do
Cardeal (de quem dependia pessoalmente grande parte do dinheiro
utilizado na construção do Colégio), pelo que, conforme podiam os
Jesuítas foram construindo o seu novo estabelecimento de ensino.
Finalmente,
no dia 5 de Novembro de 1593, o novo Colégio de Santo Antão é
inaugurado, embora as obras prossigam e o edifício só venha a estar
definitivamente concluído 59 anos depois, graças ao dinheiro posto à
disposição pela Condessa de Linhares.
Segundo documentos da época, a
mudança do hospital das antigas instalações da Praça da Figueira para o
Colégio de Santo-Antão-o-Novo foi feita em tempo tão curto (para os
nossos dias) que ficou como um acontecimento notável.
De acordo com o relatório do primeiro enfermeiro-mor do Hospital de São José, foi apenas em três dias, entre
«3/4/5
de Abril de 1775, por ordem de Sua Majestade Fidelíssima, o Senhor Rey
Dom José o primeiro, (que) se mudarão os doentes do Hospital Real de
Todos os Santos, que existia no citio do Rocio, para o novo Hospital
Real de San Jose (...) sendo feita esta sem perigo algum dos doentes, e
sem fazer despesa alguma...»
Para o conseguir, toda a cidade de Lisboa movimentou-se nestes três dias.
Nobres, pessoas caridosas e irmãos da Misericórdia conduziram macas e esquifes transportando os doentes.
Os
religiosos dos conventos de Lisboa ajudaram carregando os doentes aos
ombros e aqueles que se encontravam em pior estado tinham à disposição
coches e berlindas cedidas por nobres e ricos.
O hospital, que
conforme o relatório do enfermeiro-mor adoptou desde o início a
designação de São José em homenagem, segundo alguns autores, ao santo
patrono do monarca (ou, de acordo com outros, ao próprio rei Dom José),
foi ampliado e remodelado a partir de 1811, com a inauguração dos
primeiros quartos particulares destinados a homens.
Apesar das novas
enfermarias, dos edifícios ampliados e das salas mal iluminadas e sem
ventilação que foram melhoradas, o Hospital debatia-se já nessa altura
com uma crónica falta de espaço, pelo que se anexa , em 1841, o antigo
Hospital de S. Lázaro, destinado a leprosos.
Oito anos depois, a
administração do Hospital de São José é forçada a transferir cerca de
170 alienados que ocupavam as enfermarias de São Teotónio e Santa
Eufémia para o então recém-inaugurado Hospital de Rilhafoles.
Em
1857, aglutinou o Hospital do Desterro, instalado no velho Convento de
São Bernardo, dando origem à designação de «Hospital Real de São José e
seus anexos».
Em 1892 e 1903 seriam igualmente assimilados como «anexos» os hospitais de Arroios e Santa Marta.
O
Hospital de Dona Estefânia foi anexado em 1877, seguido de doenças
infecciosas do Rego (actual Curry Cabral), em 1906 e do Hospital de
Santo António dos Capuchos, em 1928, altura em que o nome de São José já
fora preterido em favor de uma designação mais genérica: Hospitais
Civis de Lisboa.
Construída para servir de sacristia da Igreja do
Colégio de Santo-Antão-o-Novo, a actual capela do Hospital de São José
é, sem dúvida, o mais valioso dos edifícios do complexo original sendo
considerada uma peça arquitectónica de invulgar qualidade artística,
enriquecida com mármores coloridos e decorada com esplenderosos arcazes
[grandes arcas com gavetões].
Os Jesuítas, que foram os melhores
intérpretes do Maneirismo português, deixaram aqui uma construção sem
paralelo em todo o século XVII, especialmente notável pela sua
esplêndida abóbada parabólica, com cúpula de quatro secções cilíndricas e
caixotões de mármores variados que correspondem aos vãos da parede
exterior, do que resulta um efeito de grande riqueza decorativa.
Densamente
ornamentada com talha, mármores e quadros, a zona inferior do templo
resulta harmoniosamente com as sóbrias pilastras compósitas.
Diz-se
que, quando a igreja que aqui existiu, era uma obra deslumbrante com as
suas onze capelas e uma colecção valiosa de quadros.
Além da imagem, a
óleo, de Santo Inácio de Loyola, que se pensa ter existido na
capela-mor, muitos quadros desapareceram durante o Terramoto de 1755,
embora alguns (especialmente os que estavam na sacristia) tenham
escapado.
Considerada a mais majestosa e vasta igreja de Lisboa, o
templo tinha fachada, torres, convento e oficinas de rica pedra de
mármore de lioz, e os seus púlpitos eram os mais ricos que se conheciam
entre os edifícios religiosos da época.
Além dos dois imponentes
túmulos dos fundadores de que versam documentos antigos, os quais deviam
estar expostos na capela-mor, o elemento arquitectónico mais
frequentemente referido na literatura contemporânea ao Terramoto
relaciona-se com o zimbório, um dos melhores de Lisboa.
Este Zimbório
e as famosas torres do Colégio ruiram com o templo, a primeira em 1807 e
a da direita em 1836, tendo-se aproveitado os blocos de pedra
fragmentados para calçada e outras para pedestal de estátuas.
Igualmente
de incalculável valor é o vasto conjunto de silhares de azulejos que
revestem a escadaria nobre do edifício principal do Hospital.
Manufacturados
em meados dos Século XVIII, os azulejos do São José (considerados um
dos mais belos e vastos conjuntos da sua época) são do estilo dos
«painéis historiados» e relatam cenas de caça e batalhas.
Além da
pintura que decora o tecto do piso térreo, um pouco gasta e desbotada, o
edifício principal apresenta junto ao portal, um conjunto de sete
estátuas de apóstolos, obra de artesãos italianos provenientes
igualmente do templo original.
As estátuas encontram-se na actual
disposição graças ao enfermeiro-mor D. Francisco de Almeida que as
mandou colocar ali em 1811.
Igualmente construídas por ordem deste
enfermeiro-mor foram o muro e o pórtico (com a sua magnifica moldura
escultórica, constituída por duas peças principais) na entrada que dá
para o Martim Moniz, no fim do pátio onde, durante muitos anos, era
costume realizar uma grande feira dedicada a São José e a São João.
O
Hospital organizou um pequeno Museu e Arquivo Histórico, conserva uma
imensa documentação que se estende até datas muito recuadas, entre as
quais consta, por exemplo, a ficha clínica do célebre Elmano Sadino
(BARBOSA du BOCAGE) que aqui esteve internado durante algum tempo.
Texto retirado do Blog ALFOBRE de Letras
Colégio de Santo Antão-o-Novo
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