A vista panorâmica desenhada por George
Braun (1541-1622) dá-nos uma ideia, em
miniatura, da configuração urbana e arquitectónica
da Lisboa quinhentista. Vislumbramos
aí o plausível aspecto do Largo do Corpo Santo: a
muralha fernandina, que corre nas suas costas, onde
se abria a Porta do Corpo Santo; ainda no flanco
nascente dessa muralha a Porta ou Arco dos Cobertos,
que dava para a Rua dos Cobertos (algures entre
as actuais Travessa do Cotovelo e Rua do Arsenal); mais
abaixo, em direcção ao rio, depois de passar o postigo
da Corte Real, de passagem para a rua homónima,
o Palácio do Corte-Real com as suas torres e
portão; no pequeno enfiamento de casas, a norte da
praça, vemos a fachada da ermida do Corpo Santo
(ou de Nossa Senhora da Graça), virada para o rio; finalmente,
a poente, outra fila de casas.
Até então, o pequeno largo foi na sua maior parte
um logradouro de pescadores e com um estaleiro de
embarcações. O nome do sítio deve-se à presença da
antiga ermida de Nossa Senhora da Graça, certamente
construída no século XV, reedificada em 1594, que
guardava uma imagem de S. Pedro Gonçalves, ou
“Corpo Santo”, tida por milagrosa e venerada pelos
pescadores, que iam ali pagar promessas. Para além
dum hospital, a ermida tinha uma irmandade de pescadores,
com capelão, que celebrava a sua festa no
dia de Nossa Senhora dos Prazeres: o santo era levado
debaixo dum palio em procissão pelas hortas e casas
Largo do Corpo Santo: memórias Pescadores, dominicanos, cervejeiros e gentes de particulares, com grande folia, até à igreja de São Domingos no Rossio.
Outro edifício, de maior vulto, que existiu no Largo
do Corpo Santo, foi o Palácio dos Côrte-Real, edificado
em 1585, no lugar onde no início do século
XVI existiram umas ferrarias; o grandioso palácio de
D. Cristóvão de Moura (que foi vice-rei de Portugal
em alguns períodos do domínio filipino), casado com
D. Margarida de Côrte Real (daí também se chamar
ao largo “da Côrte Real”), foi também conhecido por
palácio do Marquês de Castelo Rodrigo e terá sido
construído num aterro sobre a praia. Na planta da
cidade, assinada por João Nunes Tinoco, de 1650, o
edifício é designado por “Passos do Sr. Infante”, dado
então servir de residência ao futuro rei D. Pedro II,
estando o palácio confiscado à família Castelo Rodrigo,
desde 1642 até ser reavido em 1668, para ser
vendido à família real em 1751, ano em que sofreu
um incêndio. O palácio ruiu com o terramoto, mas em
finais do século XVIII o nome do largo ainda se confundia
entre “do Corpo Santo” ou “da Côrte-Real”.
A igreja e convento dos dominicanos, de 1659, de que
nos ocupamos com mais pormenor nesta revista, também
desapareceu com o terramoto de 1755. A igreja
foi reconstruída em 1770 sob o novo enquadramento
da urbanização pombalina. O largo apresentou-se
então, nas suas três frentes edificadas, com prédios
regularizados na altura em quatro pisos e águas furtadas.
Se nos inícios de Setecentos ainda eram reconhecidos os direitos
dos pescadores ao usufruto do chão
ribeirinho do largo, para aí enxugarem as suas redes e
recolherem os barcos, o local ganhou outra vivência:
antes do grande sismo e da reconstrução pombalina
podemos caracterizar, grosso modo, o sítio como repartido
entre as três ordens sociais: o clero, a nobreza
e o povo; depois, a par da permanência do clero, e
da frequência popular, emergiu ali uma burguesia de
pequenos ou médios negociantes.
Uma caravela de pedra em alto-relevo subsiste num
dos prédios do largo, como marca dum tempo passado.
Para além da intimidade com os mareantes, o
largo foi palco das mais variadas actividades comerciais.
Desde pelo menos o século XVII, e na centúria
seguinte, o Corpo Santo era um dos lugares da
cidade que a Câmara reservava, sob licença obrigatória,
à venda de manteiga, então de escasso fabrico
nacional, importada na sua maior parte, e reservada
socialmente às bolsas mais abastadas.
O sítio, a exemplo dos vizinhos Cais do Sodré e Remolares,
foi sempre muito frequentado, para além
dos marítimos, por estrangeiros. O viajante sueco
Carl Israel Ruders, numa passagem do livro que dedicou
à sua viagem a Portugal, em 1798-1802, notava
que no Corpo Santo existia “uma espécie de cervejaria,
onde, às noites, se reúne um grande número
de alemães, na maior parte empregados de comércio,
para conversar, beber ‘porter’ (tipo de cerveja
preta, inglesa) e fumar tabaco.” Provavelmente, esta
“cervejaria” correspondia ao estabelecimento de um
ou outro dos dois negociantes de cerveja e outras
bebidas sedeados no largo: Euzébio de Souza, que
requereu, em 1790, à Junta do Comércio licença
para instalar uma fábrica de cerveja no Corpo Santo,
ou o do inglês John Tatham, que também ensaiou
o fabrico daquela bebida numa fábrica que abriu na
Junqueira, com Luís António de Araújo, em 1793.
Ambos tiveram as respectivas moradas e lojas no
pequeno largo nos finais de Setecentos e inícios do
século XIX. O Corpo Santo esteve, assim, associado
aos primórdios da indústria cervejeira no país.
Júlio de Castilho, em A Ribeira de Lisboa (1893),
recorda-nos alguns dos aspectos do largo, durante o
século XIX: “Saindo do convento (dos dominicanos),
mas sem largar o Corpo Santo, direi que aí se estabeleceram
no princípio deste século (XIX), ou ainda no
anterior, câmaras ópticas que o povo ia aí ver. Ainda
há cinquenta e cinco anos era no largo do Corpo Santo
a venda de carvão. Repetidas queixas dos moradores
obrigaram a Câmara a publicar o edital de 10 de Março
de 1835 proibindo no boqueirão do Corpo Santo
a referida venda (…). Finalmente, um edital de 14 de
Dezembro de 1863 destina como praça para venda de
leite o mencionado boqueirão do Corpo Santo.”
Nos inícios do século XX chegou o eléctrico, com a
respectiva paragem no largo. Veio depois o tráfego
automóvel e o largo, na sua extensão até perto do rio,
cortado já pela Rua do Largo do Corpo Santo (depois
Bernardino Costa), com seguimento pela Rua
do Arsenal, assistiu à abertura, a sul, da Avenida da
Ribeira das Naus com a regularização ribeirinha na
década de 1940. Entretanto, o largo pombalino, ao
mesmo tempo que manteve algumas lojas de comércio,
acompanhou a terciarização com a instalação de
escritórios e agências de serviços.
Manuel Paquete
Isto não é o Largo do Corpo Santo, mas sim a Praça do Município, lado oposto ao edifício dos Paços do Concelho.
ResponderExcluirClaro que a foto é do Largo do Corpo Santo (eu próprio tirei a foto actual) .
ExcluirÉ fácil de confirmar pois os edifícios ainda são os mesmos (na foto antiga e na actual).
Refiro-me à primeira foto, as duas a seguir sim, são da Igreja do Largo do Corpo Santo...
ResponderExcluirAs 4 fotos são do Largo do Corpo Santo, sem dúvida alguma
ExcluirPeço desculpa. "Me disgusta", "je suis desolé", mas mesmo essas fotografias são do Largo do Corpo Santo. Conheço bem o sítio, desde o fim dos anos 50, quando nasci. O cantinho, lá ao fundo, é o da Travessa do Cotovelo; e a esquina, sobre a nossa direita, é com a Rua do Arsenal. Ali esteve instalada, décadas, a Foto Luzarte, antes de ser a "Tulipa" e o que lá está hoje...
ExcluirBoa noite! Alguém me poderia dizer onde está o espólio fotográfico da Foto Luzarte? Obrigada!
ExcluirIsabel M.